Foca (in the Sky with Diamonds)

segunda-feira, fevereiro 25, 2002

ESPAÇO LIVRE

É com muita honra que Foca News publica sua primeira colaboração. Afinal, apesar do bom humor e de um certo exageiro em alguns comentários, esse blog é produzido por um "jornalista" e assim, tem uma função social. Na verdade, este espaço virtual quer ser muito mais que um endereço acessado uma vez ou outra e apenas com a intenção de provocar graça e riso. FN tem a pretensão de ser divertido, inteligente, expressar opiniões, provocar, estimular, enfim, causar alguma reaçao em seus leitores.

Tudo pra que esse site seja especial. Pra que quem visite, sempre volte em busca de coisas novas e alguns minutos de diversão. Espero que este texto seja o primeiro de muitos enviados por vocês!







Caminhão de Verduras ( à saudade de Ella)

- Vou ali no caminhão das verduras!
Arrastando os chinelos foi atrás do caminhão. Seguindo o som estridente que anunciava cebola, batata, alface, tomate, rapadura e, resumindo, os melhores produtos da região: litoral de Santa Catarina. Tudo isso saía do alto-falante do caminhão com aquele sotaque ingênuo, puro, quase engraçado de tão puro, de Santa Catarina,
- Tchau, volta logo, disse eu.
Achei o momento apropriado para fazer uma limpeza na minha arma. Tive que usar a "nêga" na viagem de ida pra praia na BR-101. Ella Já tinha ficado puta por isso, se me visse "mexendo naquilo" de novo, surtava de vez.
- Puta que pariu, acho que era um cachorro. Fudeu com a frente do carro!!! Berrei.
Oito segundos depois:
- Porra, e o cachorro?!?, perguntou Ella, indignada.
Parei sem dar ré. Desci pra ver o estrago. Nada. Ainda bem. Gritei da frente do carro. Caminhei até o bicho. O barulho que ele fazia, doia muito, principalmente pra quem gosta de cachorro, como eu. Era um grunhido desesperado que saía de um corpo quente que sangrava e parecia tão humano quanto eu naquele momento. Não passava um carro. O que aumentava ainda mais o som dos gritos de dor da cadela branca, grande. Me lembrou o Nicky, um pastor alemão que eu tinha na adolescência. Morreu atropelado o pobre bicho. Atropelado e virgem. Nunca achei a cadela certa pra ele, pobre Nicky...
A poça de sangue em volta indicava que a cachorra não ia mais sair dali. Morreria grunhindo.
Tirei a pistola da cintura e destravei. Tudo num gesto só: "cla-clac" (o barulho me agrada). A prática possibilita isso. Não sei como consegui, nunca usei uma bala fora do stand de tiro.
Respirei fundo. Com o ar gelado da noite veio a coragem e a vontade de acabar com aquele sofrimento mútuo, ainda que aquilo me doesse mais do que atirar numa pessoa. Coisa que também nunca fiz. Seis tiros sem ver onde e liquidei com aquela dor. "Me desculpa", disse, me auto absolvendo.

A combinação entre o cheiro quente da pólvora e o ar gelado que vinha da mata à beira da estrada me fez lembrar dos tempos em que meu pai e meu avô caçavam sem piedade marrecos e outros bichos nos banhados, lá fora. Odiava aquilo. Odiava meu avô por aquilo e meu pai por outras coisas além daquilo.
Naqueles menos de 50 passos de volta ao carro, fui tomado por uma súbita vontade de dar um tiro na cabeça.Tudo aquilo, o bicho morto, meu cachorro, meu pai, meu vô. Todo mundo morto. - MERDA! MERDA! MERDA! Vou atirar. Vou acabar com tudo aqui e agora. Não quero mais essa vida, essa pressão, porra! Entrei no carro.
Até a praia, 40 minutos depois, Ella não parou de chorar. Em cinco anos, nunca vira Ella chorar tanto. "Ela tava sofrendo". Minhas últimas palavras antes de pegar no sono, em pleno sofá da sala, vendo o Jô entrevistar um cara que imita cachorro. Uma merda.
Na manhã seguinte, acordei cedo e cumpri o combinado durante a viagem antes do acidente: comprei carne, carvão e bebida pro churrasco depois da praia. Ella faria a salada.
- Bom dia? Perguntei meio implicante assim que a vim com a mesma roupa de ontem à noite, só que agora de havaianas brancas. Emoldurada pela porta lateral da casa e ainda meio sonolenta:
- Vou ali no caminhão de verduras. Respondeu Ella à minha provocação.

Até hoje hoje volto àquela praia de Santa carregando a esperança de reencontrar Ella. - E aquele caminhão de verduras? - perguntou minha mulher à um nativo nas últimas férias. - Não passa mais aqui não senhora.





Alexandre Fetter é radialista há 15 anos. Colorado fanático e admirador de carros, nas horas vagas, gosta de ler e escrever contos de suspense. Também costuma passar suas férias no litoral de Santa Catarina...